José Sarney prestando juramento durante a doença do então presidente eleito Tancredo Neves, em 15 de março de 1985

  • Author,
    Edison Veiga
  • Role,
    De Bled (Eslovênia) para a BBC News Brasil

Parece enredo de filme de Hollywood: um tratorista fica desempregado e, revoltado com o contexto sociopolítico do país, decide sequestrar um avião com o objetivo de fazê-lo colidir com a sede do governo federal, matando o presidente.

Parece enredo de filme de Hollywood, mas vai ser um filme brasileiro — ‘O Sequestro do Voo 375’ tem estreia prevista para dezembro.

Mas vamos falar sobre o filme depois. Primeiro, a fantástica história que abalou o país em 29 de setembro de 1988. Foi no voo Vasp 375, que fazia a rota Porto Velho a Rio de Janeiro com quatro escalas: Cuiabá, Brasília, Goiânia e Belo Horizonte, com um avião Boeing 737-317.

Naquele dia, contudo, houve pânico entre os 110 a bordo: um tratorista desempregado de 28 anos, o maranhense Raimundo Nonato Alves da Conceição, armado com um revólver calibre 32, anunciou que estava sequestrando a aeronave. E seu plano era arremessá-lo contra o Palácio do Planalto.

Em sua mochila, Conceição portava 90 balas para recarregar a arma.

Para o tratorista, a culpa pela situação econômica que havia feito com que ele perdesse seu emprego era do presidente, José Sarney. De acordo com dados do Dieese-Sead, naquele ano o desemprego no Brasil oscilou entre 9% e 11%. A inflação era galopante: em média, 17,7% ao mês.

Conceição trabalhava em empreiteiras de construção civil. Comprou a arma e embarcou no último trecho do voo, que decolou às 10h52 no Aeroporto de Confins, região de Belo Horizonte

Tiros e morte

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Vinte minutos depois, já no espaço aéreo do Rio, começou sua ação. Deixando claro que se tratava de um sequestro, ele disse que queria entrar na cabine de comando e baleou um comissário que tentou impedi-lo. Conceição disparou vários tiros contra a porta da cabine — um deles atingiu outro comissário, outro acertou o painel do avião.

Com receio de que a situação se tornasse ainda mais descontrolada, a tripulação decidiu ceder a ele acesso à cabine. Sem que o sequestrador notasse, o piloto, Fernando Murilo de Lima e Silva (1944-2020) conseguiu passar ao Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle de Tráfego Aéreo (Cindacta) o código correspondente à “interferência ilícita” ocorrendo a bordo.

Quando o copiloto, Salvador Evangelista, tentava se comunicar de volta com o Cindacta pelo rádio, Conceição o baleou na nuca, matando-o na hora. Com a arma apontando para o piloto Lima e Silva, o sequestrador então determinou seu plano: que o avião retornasse para Brasília.

O comandante foi hábil e conseguiu dissuadi-lo da ideia de chocar o Boeing contra o Palácio do Planalto. Argumentou que não havia condições de visibilidade para isso. Mas Conceição não topou que o avião pousasse no aeroporto de Brasília — queria que fosse em São Paulo.

Não havia combustível para tanto. Depois de manobras ousadas — para desequilibrar o sequestrador — e com um dos motores falhando, Lima e Silva conseguiu pousar no Aeroporto Internacional Santa Genoveva, em Goiânia, às 13h45.

Foram horas de negociação em terra. Às 19h, Conceição desceu da aeronave usando o piloto como escudo humano. Foi alvejado com dois tiros na altura dos rins por agentes de elite da Polícia Federal. Uma terceira bala também atingiu o piloto, na perna.

Encaminhado a um hospital, o sequestrador passou por uma cirurgia de emergência e foi anunciado que não corria risco de vida. Dias depois, contudo, morreu no hospital — o laudo apontou que em decorrência de anemia falciforme, sem relação com o fato de ele ter sido baleado.

Protocolos de segurança

Cena de gravação do filme ‘O Sequestro do Voo 375’

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DIVULGAÇÃO

Legenda da foto,

Cena de gravação do filme ‘O Sequestro do Voo 375’, que abordará o episódio

O caso se tornou um marco histórico da aviação brasileira. “Difícil dizer se houve erros quando há alguém mal-intencionado e uma circunstância inédita acontece”, comenta à BBC News Brasil a professora Larissa Ferrer Branco, arquiteta que estuda operações aeroportuárias e coordena cursos de engenharia na Universidade Presbiteriana Mackenzie.

“Em todas as indústrias e setores aprendemos sempre com casos novos, cenários improváveis ou até mesmo impensáveis. A segurança na aviação é altíssima há muitas décadas e os indicadores só melhoram”, acrescenta ela, lembrando que “é injusto julgar fatos do passado com o conhecimento que temos hoje”.

“Mas a rigor, pode-se dizer que os fatores que contribuíram para o caso dificilmente voltariam a se repetir hoje em dia, com a invasão da cabine de comando de uma aeronave comercial por um passageiro armado”, frisa Branco.

“É praticamente impossível pensar que o aparato de segurança aeroportuária atual seria permeável a ponto de alguém entrar armado a bordo sem conhecimento do comandante da aeronave, sem seguir rígidos protocolos de verificação. Além do mais, desde depois dos ataques de 11 de setembro [de 2021, nos Estados Unidos], as portas das cabines permanecem fechadas praticamente todo o tempo, só são abertas mediante protocolos muito rigorosos e são blindadas.”

Investigador de acidentes aeronáuticos e gestor de crises, Mauricio Pontes, CEO da C5i Crisis Consulting, explica à reportagem que um sequestro como este não aconteceria nos dias de hoje por conta dos protocolos de segurança implementados de lá para cá.

“A começar pela revista no embarque, equipamentos, regras para transporte de arma a bordo e treinamentos específicos”, enumera ele, lembrando que isso tudo “poderia ter feito diferença”. “Mas a cultura da época não contemplava esses cenários no país”, comenta.

Piloto-aluno na época, Pontes recorda que viu a cobertura televisiva do acontecimento. Ele acredita que os méritos foram do piloto para que uma tragédia não ocorresse.

“Acho que toda a atuação do comandante, com frieza, perícia e raciocínio sob pressão, foram decisivos”, diz. “A crise em si foi um caos. O presidente [da República] sequer foi retirado de seu gabinete, prédios não foram evacuados, enfim… Difícil falar em erros e acertos em um episódio com um enredo tão complexo.”

Segundo ele, pilotos na época recebiam um treinamento muito básico sobre como se comportar em casos assim.

“Conheciam-se regras sobre como agir em caso de interceptação e uso do transponder para informar aos órgãos de controle um ato de interferência ilícita”, cita. “Não era uma preocupação a ponto de tirar um tripulante por mais horas do cockpit para um treinamento específico.”

Atualmente, a questão é tratada com mais cuidado, com treinamentos periódicos que preparam pilotos e comissários para eventuais enfrentamentos, “desde casos de passageiros indisciplinados que põem em risco a segurança do voo até situações mais específicas e potencialmente fatais, como sequestros”.

“O comandante [do voo da Vasp no caso] foi um exemplo de profissional e se tornou um herói. Mesmo com o primeiro oficial [o copiloto] baleado, ele foi hábil e extremamente equilibrado para conduzir o sequestrador ao longo da ocorrência, evitando um desfecho que poderia ser catastrófico”, comenta a professora Branco.

“A aeronave pouso e os passageiros e tripulantes saíram ilesos, assim como prédios públicos e pessoas em terra, que eram alvo do sequestrador. Entendo que ele [o piloto Lima e Silva] acertou em tudo: a forma como conduziu uma situação extremamente incerta e grave, as manobras que fez para desestabilizar o sequestrador, a perícia e o profissionalismo, e a capacidade de trazer a aeronave de volta ao solo com segurança”, acrescenta ela.

Pontes lembra, contudo, que as melhorias de segurança de voo só foram implementadas de fato após o 11 de setembro, e não depois desse fato brasileiro.

“O assunto [do voo da Vasp] teve a repercussão típica dos grandes eventos na mídia por um curto período, mas foi rapidamente esquecido. Nada significativo de fato ocorreu em termos de procedimentos, ao que eu me lembro”, comenta. “Tanto que, em julho de 1997, um homem entrou facilmente [com um explosivo] no voo TAM 283 entre São José dos Campos e São Paulo sem ter passado pelo raio-X e a explosão a bordo matou um passageiro.”

O especialista acrescenta que tal ocasião específica deixou “a falta de segurança dos aeroportos brasileiros em xeque e a necessidade de inspeção por raio-X virou um tema levado mais a sério”.

“Mas só mesmo após o 11 de setembro houve uma revolução na segurança da aviação brasileira”, acrescenta. “Mais recentemente, após o evento com o Germanwings 9525, quando o copiloto jogou a aeronave propositalmente contra o solo [em março de 2015, nos Alpes franceses], protocolos mais rígidos sobre acesso à cabine de pilotos e outras medidas foram rapidamente colocados em prática no mundo todo, incluindo o Brasil.”

Branco concorda. “De 1988 para cá a aviação comercial mundial, e não só a brasileira, mudou bastante em termos de prevenção a sequestros”, ressalta ela. “Instalações de um enorme aparato de segurança para embarque dos passageiros nos aeroportos, proibição de acesso de passageiros nas cabines de comando durante os voos, inúmeros procedimentos operacionais antes, durante e depois dos voos para impedir o acesso de pessoas estranhas às operações nas áreas onde as aeronaves estacionam quando chegam e antes de partirem são só algumas dessas mudanças.”

“Mas nenhuma delas tem correlação direta com o caso do Vasp 375. Essas mudanças ocorreram mais tarde, após 11 de setembro de 2001. De 2001 para cá podemos dizer que as áreas de segurança mudaram completamente em relação ao que ocorria antes”, destaca a especialista.

Avião da Vasp

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Legenda da foto,

Criada em 1933, Vasp encerrou suas operações em 2005

Um filme brasileiro de ação

A ideia do filme, que se chamará ‘O Sequestro do Voo 375’ veio em consequência a um outro “quase acidente”. No caso, envolvendo o jornalista Constâncio Viana Coutinho, que em 2011, atuando como correspondente da TV Record na África, esteve em um voo que precisou fazer uma manobra arriscada em Moçambique.

“Foi uma situação bem séria, com o avião apontando o bico para baixo. Achei que aquele momento seria o fim de minha vida. Foi tão traumático que eu desenvolvi síndrome do pânico e desde então tenho muita dificuldade para entrar em avião”, conta ele, à reportagem.

O fato fez de Coutinho um obsessivo pesquisador de acidentes aéreos. E então, recuperando o caso da Vasp, ele passou a esboçar um roteiro para um documentário.

“Mas não foi possível fazê-lo, não consegui apoio, financiamento”, relata.

Mais tarde, contudo, seu roteiro acabou caindo nas graças do roteirista de cinema Lusa Silvestre. “E resolvemos que seria um filme”, diz Coutinho. “Ele [Silvestre] foi o primeiro cara que entrou no negócio, disse que estava dentro. Então eu passei a buscar outras pessoas para contar as lembranças do acontecimento.”

Coutinho ressalta que o filme “é uma homenagem direta ao piloto”, que teve “papel heróico” reconhecido por “todos os passageiros”. “Ele pousou praticamente sem combustível e fazendo manobras impensadas. Morreu [em 2020] com uma grande mágoa porque mesmo depois de tudo oque ele fez, de ter salvado tantas vidas, o Sarney nunca reconheceu isso, nunca agradeceu.”

Com o filme prestes a ser lançado, o jornalista pretende também publicar um livro a respeito. O título provisório é ‘Nas Mãos Certas’.

Em conversa com a BBC News Brasil, o roteirista Silvestre enfatiza que o que será visto nas telas “é uma história real”. “A gente não mudou a história. O que fizemos foi lançar um pouco mais de luz sobre algum personagem aqui e ali, contar um pouco mais, imaginar os subterrâneos do governo federal enquanto estava-se lidando com o sequestro”, comenta. “Mas a história é real, inclusive as acrobacias feitas pelo avião.”

“E incrivelmente teve um cara mesmo que sequestrou um avião para jogar no Palácio do Planalto”, resume.

CEO do Estúdio Escarlate, a produtora Joana Henning conta à reportagem que o maior desafio empreendido pela equipe foi fazer “um tipo de filme que nunca tinha sido feito no Brasil” — no caso, uma história de ação envolvendo um avião. “As referências de desenho de produção eram todas internacionais. Tivemos de criar soluções alternativas com menos recursos, conseguindo dar qualidade para a cena de ação que o filme merecia”, destaca, revelando que para isso foram empregadas técnicas circenses e recursos das indústrias do carnaval e da publicidade.

O diretor do filme, Marcus Baldini lembra que “esse é o 11 de setembro brasileiro, o quase 11 de setembro brasileiro”.

“E é muito surpreendente que ninguém conheça essa história”, diz ele, à BBC News Brasil. “O filme é um jeito de contar para as pessoas uma história muito importante que estava esquecida, sobre um herói brasileiro que salvou a vida de 110 pessoas com suas habilidades e capacidade de manter o controle. E isso foi importante para que essa história tivesse um final minimamente feliz.”

O especialista Pontes reconhece que se trata de uma história por muito tempo relegada ao esquecimento. “O sequestro do Vasp 375 foi sumariamente apagado da memória nacional. Não teve a repercussão internacional que merecia, tampouco”, diz.