Se hoje a Índia possui um pujante parque industrial farmacêutico, muito disso se deve aos governos de inspiração progressista e anticolonial que a governaram nas primeiras décadas após sua independência e lançaram as bases para uma política de produção autônoma de medicamentos baratos, especialmente genéricos, para atender à população. Na última semana, Outra Saúde contou o início dessa história em detalhes aos leitores. Nos anos 1980, porém, esse ciclo de governos se exauriu – e a indústria da saúde indiana passou por mudanças significativas.
Desse período em diante, com o advento global do neoliberalismo, predominaram nas esferas governamentais orientações pró-empresariais e de desestatização da economia. Uma das marcas dessa flexão da política indiana é que o setor privado se tornou decisivamente preponderante em relação ao público na indústria farmacêutica – cenário vigente até hoje, em contraposição ao que defendia Jawaharlal Nehru, líder político que conduziu o processo de emancipação política da Índia.
Porém, em uma questão-chave, o governo indiano não recuou de suas bandeiras históricas: a oposição firme a um regime de patentes farmacêuticas que dificulta o acesso aos medicamentos nos países pobres e inviabiliza sua produção local de remédios. Em entrevista a Outra Saúde, o pesquisador brasileiro Vitor Ido, do South Centre, e o especialista indiano KM Gopakumar, da Third World Network (TWN), explicam como a Índia habilmente pressionou pela inclusão de flexibilizações no Acordo TRIPS (tratado dos anos 1990 que estabeleceu padrões comuns de legislação patentária em todo o mundo) e as utilizou ao máximo para não se dobrar tão facilmente às vontades das Big Pharma instaladas no Norte Global – e, assim, manter-se firme no posto de “farmácia do Terceiro Mundo” com sua indústria local.
A transformação desse equilíbrio entre público e privado na saúde da Índia tem paralelos cronológicos com nossa história. Como conta Gopakumar, os anos 1980 foram a década em que os interesses empresariais se aproveitaram da crise dos Estados no Sul Global – o Brasil não foi exceção – para começar a difundir a ideia de que “o setor público é ineficiente” e que a solução é “fechá-lo e deixar as empresas tomarem conta”. Mas, assim como no Brasil, foi na década de 1990, especialmente de 1991 em diante, que “a liberalização econômica e as mudanças na política industrial, combinadas com a assinatura de acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC)” foram implementadas de forma mais abrangente, ele ressalta.
Na Índia, explica o pesquisador da TWN, isso resultou em medidas parciais de afastamento do controle estatal, como a redução do número de remédios sujeitos às Ordens de Controle de Preços de Medicamentos em 1987 e novamente em 1995, que passaram de 90% dos produtos comercializados a cerca de metade deles. Mas as transformações internas também foram acompanhadas de um importante embate internacional que fez com que a Índia não se abrisse completamente à penetração estrangeira – e continuasse a trajetória ascendente de sua indústria farmacêutica local, hoje a nona maior do mundo e segunda maior do Sul Global.
Acordos a favor do Norte…
Naquela década, a hegemonia unipolar de um Ocidente capturado politicamente pelas grandes corporações, inclusive farmacêuticas, foi a base para a aprovação de uma série de tratados internacionais desfavoráveis à economia dos países em desenvolvimento.
No âmbito das patentes, surgiu o acordo TRIPS (na sigla em inglês, Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio, que pode ser lido aqui), tratado assinado em 1994 que impôs uma maior uniformização da legislação patentária nos países que quisessem ser membros da OMC, então em fase de criação.
O TRIPS significou ainda mais proteção aos lucros das farmacêuticas do Ocidente, donas de milhares de patentes de remédios, que receberam proteção em praticamente todo o mundo – cenário distinto das décadas anteriores, quando muitos países as restringiam. Nas novas condições, ficaria mais difícil para os países ex-colonizados comprar medicamentos essenciais, tornados muito mais caros, ou mesmo produzi-los, agora que estariam sujeitos a punições da OMC caso desrespeitassem o “direito” de corporações bilionárias. Até hoje, movimentos sociais e organizações da sociedade civil lutam contra os efeitos injustos do TRIPS na desigualdade global.
Por um lado, muitos países apenas se resignaram a adequar-se às novas normas. Outros, como a Índia, lutaram, com êxito, pela inclusão de flexibilidades no texto do tratado e se demoraram em sua implementação.
…e a resposta que veio do Sul
A principal alteração negociada foi que “o TRIPS permitiu, depois de amplas negociações, que os países em desenvolvimento tivessem um período de transição”, diz Vitor Ido. Porém, nem todos souberam aproveitar a conquista. “O Brasil aprovou sua nova lei de patentes em 1996”, apenas dois anos após assinar o TRIPS, “já a Índia esperou até literalmente o último dia para fazer a reforma do Indian Patent Act”.
“Isso permitiu todo um processo de 10 anos para que a indústria e o governo se preparassem para a nova situação”, e mesmo o novo Indian Patent Act – aprovado em 2005 e vigente até hoje – não é tão rígido em comparação com a legislação patentária dos Estados Unidos e da Europa. A janela foi indispensável para que o país orientasse seu parque industrial a produzir autonomamente medicamentos estratégicos que ficariam muito mais custosos depois de 2005 – problema com o qual o SUS brasileiro vive às voltas, obrigado a comprar de fora os remédios caros de que precisam seus pacientes.
No Brasil, “pelo menos desde os anos 1990 houve um desmonte do potencial de desenvolvimento da nossa indústria nacional, ligado ao desmantelamento de sua estrutura, à excessiva desregulação de preços e à introdução das patentes farmacêuticas”, o que sugere o “quão deletérias” foram as escolhas tomadas pelo governo brasileiro nesse período, avalia o advogado e investigador do South Centre. “Ainda que pudesse ter sido muito pior se o Brasil tivesse assinado um tratado de livre-comércio com os Estados Unidos, como fez a Colômbia”, ele adiciona.
Vale frisar que essa movimentação paciente da Índia não descumpriu nenhuma cláusula do tratado ou representou qualquer desonestidade política. A espera estratégica foi “plenamente em conformidade com as obrigações do TRIPS e plenamente legal do ponto de vista do direito internacional”, ressalta Ido.
Restringindo o negócio com a vida
Gopakumar resume em três as características fundamentais progressivas da nova lei indiana, apesar do recuo que resultou na “legalização” das patentes de remédios no país.
A primeira consiste no fato de que as empresas nacionais não foram obrigadas a indenizar as farmacêuticas estrangeiras por terem produzido versões genéricas dos fármacos que passaram a ser protegidos por patentes, caso o tenham iniciado antes da adoção das mudanças na legislação. No máximo, elas passaram a pagar os royalties do produto.
Além disso, a Justiça da Índia seguiu tendo instrumentos para combater as solicitações imerecidas de patentes, como as que se utilizam das táticas do evergreening (exigir a extensão de uma patente com base em uma mudança insignificante no remédio) e das múltiplas patentes para um mesmo produto. “As grandes corporações sabem que, se seu argumento não for muito forte, certamente a patente será questionada”, conta o pesquisador da TWN. Por isso mesmo, é comum que, para evitar esses embates, as maiores empresas farmacêuticas do Norte Global licenciem voluntariamente seus medicamentos na Índia ou acertem acordos de transferência de tecnologia com companhias locais. Tais concessões, é evidente, não teriam acontecido sem a pressão política.
Por fim, a lei ainda prevê muitos caminhos legais para a quebra das patentes de remédios quando as corporações não querem abrir mão de nenhuma parcela de seus imensos lucros. “Se o produto não estiver sendo oferecido a um preço acessível ou não estiver conseguindo atender à demanda pública por ele”, é quase certo que o licenciamento compulsório possa ser concedido, diz Gopakumar.
Contradições em jogo
Com os instrumentos de que lançou mão para dar continuidade à produção de genéricos e impor alguns limites à penetração das patentes estrangeiras, foi possível à Índia não perder completamente ou ser obrigada a vender sua indústria farmacêutica local – ambos cenários foram vistos em diversos países do Sul Global nas décadas de 1990 e 2000. Aliás, o setor seguiu crescendo no país e ampliou sua exportação para a Ásia e a África, consolidando-se como “farmácia do Terceiro Mundo”. De 1995 a 2005, exatamente a janela aproveitada pela Índia para não implementar o TRIPS, o valor de suas exportações passou de US$600 milhões para US$3,7 bilhões anuais.
Por outro lado, Vitor Ido enfatiza que não se pode perder de vista que “essa não é uma legislação que é contrária ao TRIPS, é apenas uma legislação que o implementou de uma maneira mais voltada à saúde pública”. Por essa razão, não se pode dizer que as posições indianas dos anos 1990 tenham um caráter tão fortemente anticolonial e terceiro-mundista quanto o estímulo aos laboratórios públicos e as leis abertamente contra as patentes que se viram nos períodos Jawaharlal Nehru e Indira Gandhi. O cenário passou a ser mais de negociação de espaço.
Também nesse período, se viu uma redução significativa no financiamento dos laboratórios públicos e das farmacêuticas estatais. A IDPL, principal dessas companhias do governo, foi fechada pelo atual primeiro-ministro Narendra Modi no ano de 2016. Ocupando seu espaço, as empresas privadas (muitas vezes reforçadas com especialistas saídos do setor público) alçaram vôo.
Hoje, as maiores dessas empresas, a exemplo da CIPLA e da Dr. Reddy’s, alcançaram o porte das farmacêuticas transnacionais – e, desejosas de mais lucros, agora buscam desenvolver patentes próprias para competir no cenário capitalista internacional, possivelmente desacoplando seu crescimento econômico da garantia de medicamentos baratos.
Em reportagem subsequente, Outra Saúde apresentará o lucrativo mas contraditório quadro atual da indústria farmacêutica na Índia, com as novas alterações introduzidas pelo governo Modi, caracterizado pela “convergência de extrema-direita e neoliberalismo”, segundo Vitor Ido.
Leia também o primeiro texto da série: Como a Índia se tornou a “farmácia do Terceiro Mundo”.