Em entrevista ao jornal O Globo, concedida em sua sala no Palácio do Planalto, Celso Amorim, assessor especial da Presidência para assuntos internacionais, criticou duramente o “tarifaço” imposto por Donald Trump e alertou para os riscos de ruptura do sistema multilateral de comércio. Amorim afirmou que a quebra desse sistema traria prejuízos maiores do que eventuais vantagens comerciais pontuais. O ex-chanceler também destacou a crescente importância das relações do Brasil com China e Rússia, ressaltando que Pequim oferece hoje mais oportunidades e menos riscos do que Washington.
Segundo Amorim, o governo dos Estados Unidos busca forçar negociações bilaterais fora do âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC), o que ameaça princípios históricos do comércio internacional. Ele lembrou ainda que acordos protecionistas na década de 1930 contribuíram para a depressão econômica e, indiretamente, para a Segunda Guerra Mundial. O assessor de Lula defendeu uma postura ativa da América Latina e dos Brics para resistir a essa nova conjuntura, citando o soft power brasileiro como ferramenta estratégica.
Amorim também comentou sobre a iminente viagem de Lula à China e à Rússia, afirmando que os Brics têm peso crescente na economia mundial. Sobre a criação de uma moeda comum entre os Brics, ele negou a possibilidade, mas admitiu que o bloco poderá avançar no uso de moedas locais para facilitar o comércio. Amorim reforçou a necessidade de recalcular a posição brasileira no mundo, priorizando relações mais pragmáticas e benéficas para o país.
A seguir, a entrevista na íntegra:
O tarifaço do presidente americano Donald Trump representa, na avaliação do assessor internacional da Presidência da República, Celso Amorim, um perigoso risco para o sistema multilateral, um dos pilares da política externa brasileira.
Em sua sala no Palácio do Planalto, Amorim analisou o cenário atual, fez um paralelismo com a depressão econômica dos anos 1930 e o pós-Segunda Guerra Mundial, e alertou:
— A quebra do sistema multilateral traz um prejuízo muito maior do que a eventual vantagem comparativa que, talvez, você possa ter.
Semanas antes de embarcar para China e Rússia com Lula, Amorim defendeu as relações do Brasil com ambos os países:
— A China tem hoje uma disponibilidade de recursos para investimento no exterior que os Estados Unidos não têm. É uma questão pragmática. A China hoje oferece mais oportunidades ao Brasil e menos riscos.
Impacto do tarifaço de Trump
Em vários grupos e blocos nos quais o Brasil participa, entre eles os Brics, a defesa do multilateralismo é uma bandeira forte. Nesse contexto, Amorim avaliou o impacto do tarifaço anunciado pelo governo dos Estados Unidos:
— A ênfase no sistema multilateral é algo muito importante. Esse é o mundo que a gente está vivendo. Estamos num mundo difícil e desafiante. Mas acho que as percepções estão mudando. Não é tão fácil assim quanto parecia botar um tarifaço para todo mundo.
Para Amorim, o objetivo dos EUA era forçar negociações bilaterais, à margem da Organização Mundial de Comércio (OMC):
— Só pode ser. Se você vai negociar bilateralmente e obtém algo adequado dos EUA, a cláusula da nação mais favorecida obriga a estender a vantagem a todos. Essa cláusula é um princípio fundamental do sistema multilateral de comércio.
Ele lembrou que a quebra do multilateralismo já foi expressa na nota oficial da Casa Branca e alertou:
— Sabemos que os acordos protecionistas dos anos 1930 contribuíram para a depressão e a Segunda Guerra Mundial. Esse é o risco maior.
A ilusão da vantagem comparativa
Amorim criticou a ideia de que o tarifaço traria vantagens para o Brasil:
— Quando as pessoas dizem que o Brasil pode ter vantagem comparativa, eu acho isso uma ilusão. Sem multilateralismo, nunca teríamos vencido casos como o do algodão contra os EUA, ou o do açúcar contra a União Europeia.
Para ele, o sistema multilateral é uma questão prática, e não ideológica.
Risco de recessão global
Sobre a possibilidade de uma recessão global, Amorim disse:
— Criou-se uma tempestade global. Os mercados despencaram e continuam instáveis. A Europa está preocupada. Até os Estados Unidos podem cair numa recessão, e isso seria trágico. No passado, o colapso do consumo interno levou à necessidade de estimular a indústria armamentista.
Caminhos para o Brasil
Amorim defendeu que a América Latina tenha voz própria:
— A América Latina precisa ter uma personalidade. Nós temos soft power, não hard power. E reafirmar que somos uma zona de paz é importante.
Sobre os Brics, ele afirmou:
— Quando o grupo se move, o mundo presta atenção. E proporciona aproximações bilaterais e trilaterais.
Virada para China e Rússia
Sobre a viagem de Lula à China e Rússia:
— O Brasil tem hoje uma relação muito forte com a China. Com a Rússia, talvez um pouco menos por conta da guerra, mas ainda assim muito boa. E temos superávit comercial com a China, ao contrário dos Estados Unidos.
Segundo Amorim:
— A China tem disponibilidade de recursos que os EUA não têm. É pragmatismo. Hoje, a China oferece mais oportunidades e menos riscos.
Perspectivas para os Brics
Sobre a criação de uma moeda comum nos Brics:
— Ninguém está pensando em moeda Brics. Talvez em facilitar o comércio e o pagamento em moeda local. É uma discussão que vai continuar.