No lobby do hotel The Leonardo, em Johanesburgo, na África do Sul, a língua mais falada por ali na terceira semana de agosto era português e não inglês, um dos idiomas oficiais do país.
Quem subisse as escadas rolantes para chegar ao local daria de cara com dezenas de brasileiros — jornalistas e integrantes da equipe do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que estava no país para participar da 15ª Cúpula do Brics.
A cena se repetiu praticamente de forma idêntica em todos os outros países que Lula visitou nos primeiros oito meses de seu terceiro governo.
Nesse período, Lula viajou para 19 países. O número iguala o recorde também registrado pelo petista no primeiro ano de seu segundo mandato, em 2007 (veja dados abaixo).
E agora, assim como naquela época, a quantidade de viagens feitas por Lula virou alvo de críticas tanto de integrantes da oposição quanto dentro do governo e levanta a seguinte questão: por que Lula tem viajado tanto?
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que a quantidade de viagens de Lula ao exterior nesses primeiros oito meses é resultado de uma soma de fatores que incluem: uma espécie de demanda reprimida em relação à atuação do Brasil na esfera internacional durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e o perfil pessoal de Lula, que demonstraria mais interesse no assunto.
Eles ponderam, no entanto, que se de um lado as viagens do presidente podem "abrir portas" e gerar oportunidades no exterior, por outro elas podem dar margem a críticas internas e externas.
Recorde
João Fellet tenta entender como brasileiros chegaram ao grau atual de divisão.
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Levantamento feito com base na agenda pública de Lula mostra que, entre janeiro e o fim de agosto, ele visitou 19 países. Entre eles, estão nações como Argentina, Estados Unidos, China e países do continente africano como Angola e África do Sul.
Com base em dados da Presidência da República, a BBC News Brasil verificou que esse é o maior número de países visitados por um presidente nos oito meses do seu primeiro ano de mandato desde a redemocratização do país, em 1985.
Ainda de acordo com o levantamento, o número foi o mesmo registrado para o período no primeiro ano do segundo mandato, em 2007.
Em 2003, quando assumiu o governo pela primeira vez, Lula visitou 13 países no período.
Entre os presidentes que mais viajaram nos primeiros oito meses de seus primeiros anos de mandato estão Dilma Rousseff (PT), que presidiu o Brasil entre 2011 e 2016, e Fernando Henrique Cardoso (PSDB), que comandou o país entre 1995 e 2002. Nenhum dos dois, no entanto, atingiu as marcas de Lula.
Entre janeiro e agosto de 1995, Fernando Henrique Cardoso viajou a nove países. No mesmo período de 1999, já em seu segundo mandato, o então presidente viajou para oito países.
Dilma Rousseff, por sua vez, foi a menos destinos que Lula e Fernando Henrique Cardoso. Entre janeiro e agosto de 2011, ela viajou para seis países. Em 2015, ela foi a nove.
Demanda reprimida e 'diplomacia presidencial'
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil avaliam que o volume de compromissos internacionais de Lula pode ser explicado por dois fatores principais:
- A necessidade, segundo alguns analistas, de reposicionar o Brasil no cenário internacional após a gestão de Bolsonaro;
- O perfil do presidente Lula, que demonstra mais interesse na política externa que alguns de seus antecessores.
"Uma das razões para que ele (Lula) faça tantas viagens está relacionada à necessidade de recolocar o Brasil no mapa do mundo após quatro anos de uma política externa errática e com algumas questões problemáticas como a de Bolsonaro", diz Fernanda Magnotta, professora de Relações Internacionais na FAAP.
A política externa de Bolsonaro foi marcada por fatos como o fechamento do acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia, em 2019, um alinhamento político intenso com a administração do agora ex-presidente norte-americano Donald Trump e por polêmicas na relação do presidente com países como a França e a China.
"Qualquer outra liderança sem ser Lula teria que ir nessa direção porque era uma necessidade do Brasil", afirma Magnotta.
O diplomata Rubens Barbosa segue a mesma linha de Magnotta e diz que as viagens de Lula nos primeiros meses de seu mandato precisa ser colocada em contexto.
"É preciso contextualizar e ver que Bolsonaro, por exemplo, fez o caminho inverso. Ele não viajou, não se inseriu internacionalmente. Vejo esse movimento de Lula como normal, especialmente nesse início de governo", afirmou.
Diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil em caráter reservado apontam ainda que haveria uma espécie de "demanda reprimida" entre os países da comunidade internacional interessados em se aproximar do Brasil que não havia sido atendida nos últimos anos.
Um dos dados que corroboraria essa tese é a quantidade de líderes internacionais com quem Lula se encontrou nos primeiros oito meses de seu novo mandato.
Até agosto, Lula já teve reuniões bilaterais com 48 chefes de Estado ou de governo, segundo dados do Ministério das Relações Exteriores (MRE).
Segundo um levantamento feito pelo jornal O Globo publicado em maio, Bolsonaro se reuniu com 31 em seus quatro anos de governo.
Diplomacia presidencial
O outro ponto citado pelos especialistas ouvidos pela BBC News Brasil para explicar a quantidade de viagens de Lula nos primeiros meses de seu novo governo é o que os estudiosos de política externa chamam de diplomacia presidencial.
"A diplomacia presidencial é aquela marcada pela pretensão do líder em se envolver diretamente em negociações internacionais com outras lideranças sem utilizar, necessariamente, o intermédio de ministros e diplomatas", explica Fernanda Magnotta.
Cientistas políticos e acadêmicos do campo das relações internacionais também ponderam que o exercício da diplomacia presidencial pode refletir de forma mais ou menos acentuada características ou interesses pessoais do governante.
Dessa forma, líderes mais interessados em política externa tenderiam a ter uma atuação mais forte em fóruns multilaterais, enquanto outros, mais preocupados com questões domésticas, adotariam um perfil diferente.
Os acadêmicos avaliam também que a diplomacia presidencial pode, em alguma medida, gerar descontinuidade de projetos ou mudanças abruptas de prioridade a cada mudança de governo, especialmente em países nos quais os poderes do governante são maiores, como normalmente acontece nos regimes presidenciais.
"Isso (relações internacionais) é visto por líderes, e Lula é um deles, como uma forma de aumentar a visibilidade do país e do seu governo no cenário internacional para defender os interesses da nação com a máxima efetividade simbólica", diz Magnotta.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que Lula já havia demonstrado interesse em política externa nos seus dois primeiros mandatos (2003 a 2006 e 2007 a 2010). Por isso, o foco de Lula em uma agenda repleta de compromissos internacionais não chegou a surpreender os analistas ouvidos.
"Lula já havia feito isso no passado. Essas viagens todas são uma decorrência da forma como o presidente vê qual é o papel que o país deve desempenhar. Ele está aproveitando a visibilidade internacional que tem", afirmou o diplomata Rubens Barbosa.
Segundo Fernanda Magnotta, a intensidade das viagens de Lula também têm relação com a sua visão de mundo.
"Lula parece acreditar que é do interesse do Brasil se colocar como um ator global e não apenas uma potência média ou regional. Um ator global interessado em rever a ordem internacional", diz a professora.
Em entrevista à BBC News Brasil em agosto, o professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) Oliver Stuenkel disse ver que há um esforço em curso do governo brasileiro para aumentar a influência global do país.
"Há um esforço claro de querer ampliar a visibilidade e influência do Brasil sobretudo depois de 10 anos que inviabilizaram uma atuação do Brasil na arena internacional", disse Stuenkel.
Com esse objetivo em mente, as viagens de Lula ao exterior seriam uma forma de atingir essa meta.
Oportunidades, críticas e riscos
Fernanda Magnotta aponta que a presença de Lula em tantos eventos internacionais pode representar algumas oportunidades ao Brasil.
"A principal vantagem de uma agenda tão intensa é o aumento da visibilidade global. Quando temos um presidente ativo internacionalmente, isso pode atrair investimentos, oportunidades e aumentar as chances de haver articulações políticas com outros países", disse a professora.
A quantidade de viagens de Lula, no entanto, passou a ser alvo de críticas de oposicionistas poucos meses após ele iniciar o seu mandato.
Uma das críticas é de que Lula estaria supostamente mais interessado em temas internacionais como a guerra na Ucrânia (suas intervenções sobre o assunto geraram polêmica) do que em questões domésticas, como a dificuldade do governo de montar uma base parlamentar sólida ou a política econômica.
"Um foco excessivo na política externa traz consigo alguns riscos. Muita gente vai dizer, por exemplo, que a agenda externa gera uma desatenção para as questões internas do país", explica Fernanda Magnotta.
E Rubens Barbosa diz: "Até agora, o governo conseguiu aprovar seus projetos, mas se alguma reforma importante empacar, o presidente poderá ser alvo de críticas mais pesadas por conta dessa agenda internacional".
Um dos problemas mais recorrentes do atual governo é sua sustentação parlamentar no Congresso Nacional.
Apesar de o governo vir conseguindo aprovar a maior parte dos seus projetos como o novo arcabouço fiscal e a primeira parte da reforma tributária, analistas políticos avaliam que Lula ainda não tem uma base sólida e que depende de negociações pontuais para conseguir fazer avançar a sua agenda.
Na tentativa de ampliar sua base, o governo vem promovendo mudanças no comando de ministérios. Nos últimos meses, o deputado federal Celso Sabino (União Brasil-PA) assumiu a pasta do Turismo após a saída de Daniela Carneiro.
Há ainda a expectativa de uma reforma ministerial nos próximos dias, mas que vem sendo adiada e parte desse atraso vem sendo atribuído à agenda internacional de Lula nos últimos meses.
O deputado federal Rogério Correia (PT-MG), um dos vice-líderes do governo na Câmara dos Deputados, admitiu à BBC News Brasil que houve, nos primeiros meses do governo, certa preocupação com relação a como as viagens de Lula poderiam afetar a capacidade de articulação política da atual administração.
Ele diz que um ponto de atenção foi a tramitação da medida provisória que determinou a atual organização dos ministérios do governo Lula.
Em maio, a tramitação da MP começou a preocupar o governo depois que membros do chamado Centrão, que lideravam esse processo, inseriram mudanças como a retirada de poderes dos ministérios dos Povos Indígenas (MPI) e do Ministério do Meio Ambiente (MMA).
Em meio ao impasse, os dias foram se passando sem que o governo conseguisse chegar a um acordo. O risco era que, se a MP não fosse votada e convertida em lei até os primeiros dias de junho, ela perderia validade e a estrutura dos ministérios do governo Lula teria que ser a mesma herdade do governo Bolsonaro.
O problema é que em maio, enquanto as negociações no Congresso Nacional iam a todo vapor e o governo encontrava resistências, Lula cumpria uma intensa agenda internacional visitando o Reino Unido, Japão, Itália e Vaticano.
Nos bastidores, até mesmo integrantes do governo reclamaram da dificuldade em alinhar os termos da negociação com o Centrão enquanto o presidente estava fora do país.
A MP acabou sendo aprovada no último dia antes de perder a validade e com a perda de atribuições do MPI e do MMA.
"Ali, a gente ficou um pouco preocupado", lembra o deputado. "O problema não eram as viagens, mas a qualidade do tempo que se dedicava à articulação. Mas isso já foi resolvido. Quando está em Brasília, o presidente tem se dedicado mais à articulação. E quando está fora, os temas domésticos também são repassados a ele diretamente", diz o parlamentar.
Fernanda Magnotta diz que outro ponto de tensão quando um governo assume uma política externa tão movimentada é com relação à expectativa do seu resultado e o potencial de polarização política.
"Na medida em que há um aumento desses compromissos, também aumentam as expectativas e, por consequência, as cobranças e as frustrações. O risco dessa diplomacia intensiva está ligado às entregas que ela será capaz de fazer e da possibilidade de uso político de tudo o que é decidido como elemento que incentive a polarização política que já existe no país", diz a professora.
O senador e líder da oposição no Senado, Rogério Marinho (PL-RN), critica, por exemplo, a condução da política externa de Lula.
"Durante o governo Bolsonaro, nós fechamos o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia e, agora, o acordo está parado. Além disso, o presidente Lula vem dando declarações equivocadas sobre a guerra na Ucrânia", diz Marinho.
Freio
Integrantes do governo apontam que o ritmo de viagens de Lula nos próximos meses deverá diminuir. Após as idas à Índia para a reunião do G20, grupo das 20 maiores economias do mundo, Cuba e Estados Unidos (para a Assembleia Geral da ONU), Lula fará uma pausa para se submeter a uma cirurgia no quadril.
Há meses, o presidente vem sofrendo com dores crônicas na região. A cirurgia está prevista para acontecer no final de setembro ou início de outubro e deverá lhe obrigar a ficar em recuperação por algumas semanas.
A possível próxima viagem internacional de Lula em 2023 é a ida para a COP-28 (Conferência das Nações Unidas para o Clima), entre novembro e dezembro, nos Emirados Árabes Unidos.